quinta-feira, 7 de abril de 2011

A palestra com um dedo em riste

Waldehir Bezerra de Almeida
 waldehir@solar.com.br

Análise do sofrimento específico de cada um de nós, feita em palestra pública é um risco que o expositor não deve correr. A lei de causa e efeito reduzida a uma tabela de equivalência não corresponde aos ensinamentos dos Espíritos a respeito da dor como instrumento de progresso espiritual.




            Vez ou outra assistimos uma palestra que é um verdadeiro tribunal. O orador se propõe a analisar a delicada questão da dor, mesmo quando o tema tratado não seja a lei de causa e efeito. Ouvimos expressões como estas: “ninguém sofre por acaso”, “a dor é produto da nossa imperfeição”...E por aí vai. Até aqui tudo bem: a oratória espírita tem a finalidade de divulgar os postulados da Terceira Revelação, esclarecendo e consolando os ouvintes ao mesmo tempo.
No entanto, quando o expositor, não preparado devidamente, arriscar fazer uma análise comparativa e específica da dor e da sua causa, fazendo-o como se estivesse de posse de uma tabela de equivalência, passa, inadvertidamente, a julgar cada um dos presentes pela forma simplista como ele interpreta o sofrimento do ser humano. A médica e professora Irvênia Prada relata sua experiência em um desses momentos. Com ela a palavra:
- “Certa vez, ouvi um palestrante espírita – referindo-se à lei da causa e efeito – que a epilepsia é uma doença carmática resultante de aviltamentos sexuais do passado. Para reforçar a idéia, ainda tentou estabelecer semelhança entre tipos de chilique que se manifestam em ambas as situações.
Isso me incomodou muito na ocasião, primeiro porque estava comigo um aluno meu, jovem e muito querido, que é epiléptico. Esse tipo de coisa dito lá na frente, na tribuna, parece plasmar a figura de um dedo que aponta para a ferida alheia e a expõe.
Segundo, fiquei pensando que tipo de explicação, coerente com o que ele estava dizendo, poderia se dar ao caso da Nana, uma de minhas cachorras, também epiléptica desde os primeiros meses de vida. Com a Nana, existem muitos cães, cavalos, macacos e outros animais das mais variadas espécies, que sofrem de epilepsia. E a epilepsia nos animais tem as mesmas características clínicas que a dor do ser humano, com os mesmos sintomas, como a ocorrência do íctus (crise) e similitude do traçado do eletroencefalograma”.
Isso acontece porque o irmão que está na tribuna ao tecer comentários em torno da dor, detém uma visão reducionista da questão, e cai no simplismo de pregar que todo sofrimento é uma expiação, pagamento de um erro cometido em vida pregressa. Esse conceito maniqueísta da lei de ação e reação tem gerado muitas dúvidas naqueles que assistem às palestras. Explicada dessa forma a dinâmica da dor, o expositor incentiva a que seus ouvintes se iniciem na prática de analisar o seu sofrimento e o dos outros de uma forma linear, como se fosse algo matemático. Se a mulher é frígida e o homem é impotente: abusaram do sexo. Se Fulano está sofrendo de cirrose hepática: usou demasiado bebidas alcoólicas. Nasceu com alguma deficiência física nos pés ou nas mãos? Sem dúvida usou-os para o crime. E nesse caso, se recorre logo ao Evangelho e lá vem a citação de Mateus, XVIII-8: “Se a tua mão ou o teu pé te escandalizam, corta-os e atira-os para longe de ti. Melhor é que entres mutilado ou manco para a Vida do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres atirado no fogo eterno” (Bíblia de Jerusalém). A esse tipo de exposição eu chamo de “palestra com um dedo em riste”, pois, enquanto o orador se expande nos seus comentários, cada ouvinte começa a sentir um dedo invisível mexendo na sua ferida, fazendo-a doer mais do que doía antes da palestra, conforme a observação da insigne professora Irvênia.
Ora! Sabemos, pelo estudo da Codificação e das obras complementares que a verdadeira função da dor não é punir. André Luiz nos fala da diversidade da natureza do sofrimento, revelando-nos a existência da dor-expiação, dor-evolução e dor-auxílio. Logo, afirmar que se alguém sofre disso ou daquilo é por que fez ou deixou de fazer isso ou aquilo é, no mínimo, descaridoso.
A busca ansiosa de uma explicação para a origem e o significado das adversidades da vida tem levado os próprios espíritas a interpretações precipitadas e distanciadas dos ensinamentos dos Espíritos a respeito. A dificuldade de compreender a Codificação sobre esse assunto não é de agora. Muitos chegaram mesmo a criticar o Codificador, dizendo que dava uma falsa idéia da ação divina, pois suas obras somente falavam de castigo e de expiação. Leon Denis, o filósofo do Espiritismo, contemporâneo de Allan Kardec, afirma que “esta apreciação resulta de um exame muito superficial das obras do grande iniciador. A idéia, a expressão de castigo, excessiva talvez quando ligada a certas passagens insuladas, mal interpretadas em muitos casos, atenua-se e apaga-se quando se estuda a obra inteira”
Como explicar a equivalência de doenças modernas, as quais não existiam nos séculos passados, com as faltas cometidas naquela época? Na verdade, diz Leon Denis, a reparação de hoje não se apresenta sempre sob a mesma forma que a falta cometida ontem, esclarecendo que as mudanças sociais, dando origem a novas condições de vida, e a evolução histórica, alterando conceitos, leis e costumes, impedem que a similitude do resgate, em obediência à lei de causa e feito, se mantenha em todas as situações.
Recorrendo ao Evangelho de João, 9:1-3, temos, no mínimo, uma sugestão da possibilidade de existir sofrimento que não seja unicamente por falta cometida. Lá nós lemos: “Ao passar, ele (Jesus) viu um homem, cego de nascença. Seus discípulos lhe perguntaram: - “Rabi, quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?” Jesus respondeu: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus”. A Bíblia de Jerusalém interpreta que aquele cego estava ali pela providência divina para que Jesus tivesse a oportunidade de provar a autenticidade de sua missão, por meio de sinais, tal como os judeus esperavam que todos os seus profetas assim procedessem. Allan Kardec pensa diferente, com relação a esse passo evangélico, e admite que “se não era uma expiação do passado, era uma provação apropriada ao progresso daquele Espírito, porquanto Deus, que é justo, não lhe imporia um sofrimento sem utilidade”. André Luiz, Espírito que vem complementando criteriosamente a Codificação, parece concordar com o Mestre de Lyon ao nos descrever, pela palavra do Instrutor Druso, o significado da dor-auxílio. Ouçamo-lo:
-“Em muitas ocasiões, no decurso da luta humana, nossa alma adquire compromissos vultosos nesse ou naquele sentido. Habitualmente, logramos vantagens em determinados setores da experiência, perdendo em outros. Às vezes, interessamo-nos vivamente pela sublimação do próximo, olvidando a melhoria de nós mesmos. É assim que, pela intercessão de amigos devotados à nossa felicidade e à nossa vitória, recebemos a bênção de prolongadas e dolorosas enfermidades no envoltório físico, seja para evitar-nos a queda no abismo da criminalidade, seja, mais freqüentemente, para serviço preparatório da desencarnação, a fim de que não sejamos colhidos por surpresas arrasadoras, na transição da morte. O enfarte, a trombose, a hemiplegia, o câncer penosamente suportado, a senilidade prematura e outras calamidades da vida orgânica constituem, por vezes, dores-auxilio, para que a alma se recupere de certos anganos em que haja incorrido na existência do corpo denso, habilitando-se, através de longas reflexões e benéficas disciplinas, para o ingresso respeitável na Vida Espiritual”. O texto nos leva a admitir que a dor poderá, também, surgir em nossa caminhada evolutiva para nos auxiliar, impedindo o cometimento dos mesmo enganos de vidas anteriores. Não é exatamente uma expiação... Assim entendemos. (Todos os negritos até aqui são nossos).
Diante do estudo feito, ao palestrante cabe a responsabilidade de não semear conceitos duvidosos no seu público, em nome da Doutrina Espírita, confundindo o fato, ou seja, o que realmente é do escopo da filosofia espírita, com a sua opinião a respeito dele. No caso do sofrimento, consideramos de conseqüência desastrosa a análise superficial do sofrimento de cada um. Como afirmamos de início, uma abordagem maniqueísta da dor, ao invés de consolar os ouvintes, estes, ao contrário, sentir-se-ão apontados por um enorme dedo acusador. Irão para seus lares pensando no que fizeram de mal para sofrer o que sofrem, quando deveriam levar a certeza de que o sofrimento é um desafio ao progresso espiritual de todos nós e que não nos falta em momento algum a assistência do Consolador, ajudando-nos a suportá-lo com resignação.
Concluindo, lembramos a advertência que nos faz o confrade e amigo Luiz Signates:
“Ante a dor e a ignorância espiritual, o erro e o desespero humanos, o esclarecimento espírita surge como sol nas trevas da sociedade. É fundamental, por isso, que o espírita se aprimore na condição de comunicador. Ao abraçar a sublime tarefa, converter-se-á em lâmpada viva, constantemente alimentada pelas energias divinas e colocada sempre mais alto pelo conhecimento haurido do estudo”.

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