Waldehir Bezerra de
Almeida
waldehir@solar.com.br
Análise
do sofrimento específico de cada um de nós, feita em palestra
pública é um risco que o expositor não deve correr. A lei de causa
e efeito reduzida a uma tabela de equivalência não corresponde aos
ensinamentos dos Espíritos a respeito da dor como instrumento de
progresso espiritual.
Vez
ou outra assistimos uma palestra que é um verdadeiro tribunal. O
orador se propõe a analisar a delicada questão da dor, mesmo quando
o tema tratado não seja a lei de causa e efeito. Ouvimos expressões
como estas: “ninguém sofre por acaso”, “a dor é produto da
nossa imperfeição”...E por aí vai. Até aqui tudo bem: a
oratória espírita tem a finalidade de divulgar os postulados da
Terceira Revelação, esclarecendo e consolando os ouvintes ao mesmo
tempo.
No
entanto, quando o expositor, não preparado devidamente, arriscar
fazer uma análise comparativa e específica da dor e da sua causa,
fazendo-o como se estivesse de posse de uma tabela de equivalência,
passa, inadvertidamente, a julgar cada um dos presentes pela forma
simplista como ele interpreta o sofrimento do ser humano. A médica e
professora Irvênia Prada relata sua experiência em um desses
momentos. Com ela a palavra:
- “Certa
vez, ouvi um palestrante espírita – referindo-se à lei da causa e
efeito – que a epilepsia é uma doença carmática resultante de
aviltamentos sexuais do passado. Para reforçar a idéia, ainda
tentou estabelecer semelhança entre tipos de chilique que se
manifestam em ambas as situações.
Isso me
incomodou muito na ocasião, primeiro porque estava comigo um aluno
meu, jovem e muito querido, que é epiléptico. Esse tipo de coisa
dito lá na frente, na tribuna, parece plasmar a figura de um dedo
que aponta para a ferida alheia e a expõe.
Segundo,
fiquei pensando que tipo de explicação, coerente com o que ele
estava dizendo, poderia se dar ao caso da Nana, uma de minhas
cachorras, também epiléptica desde os primeiros meses de vida. Com
a Nana, existem muitos cães, cavalos, macacos e outros animais das
mais variadas espécies, que sofrem de epilepsia. E a epilepsia nos
animais tem as mesmas características clínicas que a dor do ser
humano, com os mesmos sintomas, como a ocorrência do íctus (crise)
e similitude do traçado do eletroencefalograma”.
Isso
acontece porque o irmão que está na tribuna ao tecer comentários
em torno da dor, detém uma visão reducionista da questão, e cai no
simplismo de pregar que todo sofrimento é uma expiação, pagamento
de um erro cometido em vida pregressa. Esse conceito maniqueísta da
lei de ação e reação tem gerado muitas dúvidas naqueles que
assistem às palestras. Explicada dessa forma a dinâmica da dor, o
expositor incentiva a que seus ouvintes se iniciem na prática de
analisar o seu sofrimento e o dos outros de uma forma linear, como se
fosse algo matemático. Se a mulher é frígida e o homem é
impotente: abusaram do sexo. Se Fulano está sofrendo de cirrose
hepática: usou demasiado bebidas alcoólicas. Nasceu com alguma
deficiência física nos pés ou nas mãos? Sem dúvida usou-os para
o crime. E nesse caso, se recorre logo ao Evangelho e lá vem a
citação de Mateus, XVIII-8: “Se a tua mão ou o teu pé te
escandalizam, corta-os e atira-os para longe de ti. Melhor é que
entres mutilado ou manco para a Vida do que, tendo duas mãos ou dois
pés, seres atirado no fogo eterno” (Bíblia de Jerusalém). A esse
tipo de exposição eu chamo de “palestra com um dedo em riste”,
pois, enquanto o orador se expande nos seus comentários, cada
ouvinte começa a sentir um dedo invisível mexendo na sua ferida,
fazendo-a doer mais do que doía antes da palestra, conforme a
observação da insigne professora Irvênia.
Ora!
Sabemos, pelo estudo da Codificação e das obras complementares que
a verdadeira função da dor não é punir. André Luiz nos fala da
diversidade da natureza do sofrimento, revelando-nos a existência da
dor-expiação, dor-evolução e dor-auxílio. Logo, afirmar que se
alguém sofre disso ou daquilo é por que fez ou deixou de fazer isso
ou aquilo é, no mínimo, descaridoso.
A busca
ansiosa de uma explicação para a origem e o significado das
adversidades da vida tem levado os próprios espíritas a
interpretações precipitadas e distanciadas dos ensinamentos dos
Espíritos a respeito. A dificuldade de compreender a Codificação
sobre esse assunto não é de agora. Muitos chegaram mesmo a criticar
o Codificador, dizendo que dava uma falsa idéia da ação divina,
pois suas obras somente falavam de castigo e de expiação. Leon
Denis, o filósofo do Espiritismo, contemporâneo de Allan Kardec,
afirma que “esta apreciação resulta de um exame muito superficial
das obras do grande iniciador. A idéia, a expressão de castigo,
excessiva talvez quando ligada a certas passagens insuladas, mal
interpretadas em muitos casos, atenua-se e apaga-se quando se estuda
a obra inteira”
Como
explicar a equivalência de doenças modernas, as quais não existiam
nos séculos passados, com as faltas cometidas naquela época? Na
verdade, diz Leon Denis, a reparação de hoje não se apresenta
sempre sob a mesma forma que a falta cometida ontem, esclarecendo que
as mudanças sociais, dando origem a novas condições de vida, e a
evolução histórica, alterando conceitos, leis e costumes, impedem
que a similitude do resgate, em obediência à lei de causa e feito,
se mantenha em todas as situações.
Recorrendo
ao Evangelho de João, 9:1-3, temos, no mínimo, uma sugestão da
possibilidade de existir sofrimento que não seja unicamente por
falta cometida. Lá nós lemos: “Ao passar, ele (Jesus) viu um
homem, cego de nascença. Seus discípulos lhe perguntaram: - “Rabi,
quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?” Jesus
respondeu: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele
sejam manifestadas as obras de Deus”. A Bíblia de Jerusalém
interpreta que aquele cego estava ali pela providência divina para
que Jesus tivesse a oportunidade de provar a autenticidade de sua
missão, por meio de sinais, tal como os judeus esperavam que todos
os seus profetas assim procedessem. Allan Kardec pensa diferente, com
relação a esse passo evangélico, e admite que “se não era uma
expiação do passado, era uma provação apropriada ao progresso
daquele Espírito, porquanto Deus, que é justo, não lhe imporia um
sofrimento sem utilidade”. André Luiz, Espírito que vem
complementando criteriosamente a Codificação, parece concordar com
o Mestre de Lyon ao nos descrever, pela palavra do Instrutor Druso, o
significado da dor-auxílio. Ouçamo-lo:
-“Em
muitas ocasiões, no decurso da luta humana, nossa alma adquire
compromissos vultosos nesse ou naquele sentido. Habitualmente,
logramos vantagens em determinados setores da experiência, perdendo
em outros. Às vezes, interessamo-nos vivamente pela sublimação do
próximo, olvidando a melhoria de nós mesmos. É assim que, pela
intercessão de amigos devotados à nossa felicidade e à nossa
vitória, recebemos a bênção de prolongadas e dolorosas
enfermidades no envoltório físico, seja para evitar-nos a queda no
abismo da criminalidade, seja, mais freqüentemente, para serviço
preparatório da desencarnação, a fim de que não sejamos colhidos
por surpresas arrasadoras, na transição da morte. O enfarte, a
trombose, a hemiplegia, o câncer penosamente suportado, a senilidade
prematura e outras calamidades da vida orgânica constituem, por
vezes, dores-auxilio, para que a alma se recupere de certos anganos
em que haja incorrido na existência do corpo denso, habilitando-se,
através de longas reflexões e benéficas disciplinas, para o
ingresso respeitável na Vida Espiritual”. O texto nos leva a
admitir que a dor poderá, também, surgir em nossa caminhada
evolutiva para nos auxiliar, impedindo o cometimento dos mesmo
enganos de vidas anteriores. Não é exatamente uma expiação...
Assim entendemos. (Todos os negritos até aqui são nossos).
Diante do
estudo feito, ao palestrante cabe a responsabilidade de não semear
conceitos duvidosos no seu público, em nome da Doutrina Espírita,
confundindo o fato, ou seja, o que realmente é do escopo da
filosofia espírita, com a sua opinião a respeito dele. No caso do
sofrimento, consideramos de conseqüência desastrosa a análise
superficial do sofrimento de cada um. Como afirmamos de início, uma
abordagem maniqueísta da dor, ao invés de consolar os ouvintes,
estes, ao contrário, sentir-se-ão apontados por um enorme dedo
acusador. Irão para seus lares pensando no que fizeram de mal para
sofrer o que sofrem, quando deveriam levar a certeza de que o
sofrimento é um desafio ao progresso espiritual de todos nós e que
não nos falta em momento algum a assistência do Consolador,
ajudando-nos a suportá-lo com resignação.
Concluindo,
lembramos a advertência que nos faz o confrade e amigo Luiz
Signates:
“Ante a
dor e a ignorância espiritual, o erro e o desespero humanos, o
esclarecimento espírita surge como sol nas trevas da sociedade. É
fundamental, por isso, que o espírita se aprimore na condição de
comunicador. Ao abraçar a sublime tarefa, converter-se-á em lâmpada
viva, constantemente alimentada pelas energias divinas e colocada
sempre mais alto pelo conhecimento haurido do estudo”.